RUSSINHO: um ídolo esquecido

O primeiro jogador do Vasco a marcar 100 gols também foi o único a conseguir realizar tal feito nos 100 primeiros jogos como titular. Excluído pela AMEA e eleito o melhor do Brasil em 1930, tem a maior média de gols dentre os maiores artilheiros do Clube e foi o herói da histórica goleada de 7 gols no Clássico dos Milhões. Quase um século mais tarde, essa investigação inédita que propõe relembrar a carreira do craque encontra novas fontes, entrevistas, imagens e um raro vídeo esquecido na internet que flagra um gol de Russinho no auge do futebol da década de 20.

Bruno Pagano
34 min readJul 26, 2020
Fonte: reprodução
Fonte: 1 - Centro de Memória do Club de Regatas Vasco da Gama. 2 - Jornal Diário da Noite.
Fonte: blog Memória do Torcedor Vascaíno.

Carregar nas costas uma história de muitas glórias, lutas e vitórias tem seu peso e seu preço. Dor de cabeça boa, é claro, em bom futebolês.
É que dentre mais de 120 anos de história, o imaginário do vascaíno inconscientemente organizado em “prateleiras” vai ficando cheio, se lotando.
É preciso organizá-lo para não se perder. São muitos craques e identidades. Com o tempo, as prateleiras vão se dividindo em grupos: “do Expresso”, “do Camisas Negras”, “os Artilheiros”, “da Libertadores” e afins.
Enquanto os craques vão compondo listas, as identidades vão se perdendo.
É prática do bom historiador, ao resgatar o passado, projetar símbolos de construção e memória para elucidar com perícia um período. É desafio do historiador do futebol fazer isso com fontes que exigem ampla investigação, filtro contra os muitos equívocos e olhos atentos para encontrar as poucas evidências.
Não fossem os primeiros craques, talvez os clubes não pudessem ter hoje os maiores ídolos. Tudo é uma construção. E sob a luz da influência inspiradora de José da Silva Rocha, historiador e presidente vascaíno nos anos 60, este é mais um trabalho que se atenta a resgatar a experiência humana em uma de suas formas mais belas, o futebol antigo. E resgatar, talvez, um dos mais esquecidos dentre os grande ídolos da história do Club de Regatas Vasco da Gama.

O Primeiro Grande Artilheiro do CRVG

Moacyr Siqueira de Queiroz, ou simplesmente Russinho, foi um futebolista do período amador e profissional do futebol, nascido em 1902 e estreando em 1922 pelo Andarahy, chegando ao Vasco em 1924, aos 22 anos de idade. Jogou pelo clube por 11 temporadas (1924–34) colecionando recordes como o primeiro a marcar 100 e 200 gols pela equipe, duas artilharias e 3 títulos de Carioca pelo Vasco. Eleito o melhor futebolista brasileiro de 1930, marcou sua geração com atuações individuais impactantes, como o 5 a 0 contra o América na final de 1929 e o 7 a 0 contra o Flamengo em 1931, partidas em que Russinho fez mais do que se pensa e que serão melhor exploradas ao longo dos capítulos. Também foi Diretor e até Técnico Interino do Vasco, a partir de 1938. Russinho é o único jogador do Vasco a conseguir marcar 100 gols nas primeiras 100 partidas como titular, terminando sua passagem com 230 gols em 253 jogos e se mantendo por algumas temporadas com média superior ou igual a 1 gol por jogo, anos que fizeram do atacante o maior ídolo vascaíno de seu tempo, chegando a jogar a Copa do Mundo de 1930 pela Seleção Brasileira. Mesmo com uma carreira vitoriosa, faleceu afastado de riqueza e amigo do esquecimento, em 1992, mostrando uma cruel face da realidade das aposentadorias dos ex-atletas, principalmente naquele tempo. Para ilustrar a importância de Russinho ao longo da sua trajetória no Gigante, resolvi estabelecer uma pequena cronologia da carreira do craque, pensando algumas novas fontes e critérios de pesquisa que permitem explorar dados que grande parte da comunidade vascaína provavelmente não tem conhecimento. Escancarando, assim, a urgência em fazer público e acessível mais um belo episódio da história mais bonita do futebol.

AQUI, um pequeno índice pra você navegar melhor usando o CTRL+F:

#1- A trajetória de Russinho no Vasco

#1.1 — O Vasco que Russinho encontrou (1923–24)
#1.2 — A Temporada de 1924
#1.3 — A Temporada de 1925
#1.4 — A Temporada de 1926
#1.5 — A Temporada de 1927
#1.6 — A Temporada de 1928
#1.7 — A Temporada de 1929

#1.8 — A Temporada de 1930
#1.9 — A Temporada de 1931
#1.10 — O Início do Fim

#2 — Arquivos raros: vídeo esquecido na internet flagra gol de Russinho em 1926

#3 — Russinho, o amadorismo marrom e a propaganda nos anos 20 e 30.

#4 — Conclusão

#1- A trajetória de Russinho no Vasco

#1.1 - O Vasco que Russinho encontrou (1923–24)

Naquele Rio de Janeiro de antes do que autores como Mário Filho, em O Negro no Futebol Brasileiro, e outros vários entendem como a revolução que o Vasco operou no futebol no ano de 1923, haviam apenas duas propostas de clube de futebol possíveis: os clubes grandes, que eram campeões usando jogadores brancos e ricos e com tempo e condições materiais suficientes para se dedicarem mais ao esporte. E os clubes pequenos, pobres, que ainda não chegavam perto do título, usando jogadores pretos e brancos de baixa condição social, sem as tais condições materiais. É quando o Vasco vence o Campeonato Carioca organizado pela LMDT - Liga Metropolitana de Desportos Terrestres, o campeonato da capital federal Rio de Janeiro, que essa estrutura é abalada, gerando o episódio conhecido como A Resposta Histórica e todo o embate com a nova liga criada, a AMEA - Associação Metropolitana de Esportes Athleticos. Momento político que mostrou ao Brasil as cores das bandeiras que o Vasco levantava: o preto, o branco e o vermelho, dos negros, dos pobres, dos portugueses e de todos os outros. Tantos outros que, pelos critérios da comissão de investigação da AMEA, fundados e baseados nos preconceitos de raça e de classe, não restaria quase ninguém no time titular do Vasco. Nem mesmo Russinho, que apesar de ser branco, era pobre, sem bom vínculo empregatício, não servindo assim para as ambições ameístas de um futebol aristocrata. Assim, mesmo sem nem ter estreado pelo Vasco ou conquistado o campeonato de 1923, Russinho foi barrado pela AMEA junto com os campeões da cidade.

Após a análise das inscrições dos jogadores do Vasco na AMEA, esta instituição cortou vários deles de seu time de futebol, alguns grandes craques como Leitão, Ceci, Bolão, Negrito e Russinho, recém-contratado do Andarahy, todos de origem humilde: (…) Apesar dos enormes lucros que o Vasco dava a todos os clubes, com rendas gigantescas quando era visitante no campo adversário, a afronta de ter em seus quadros jogadores das classes mais baixas provocou verdadeira repulsa aos grandes times da capital. Os valores aristocráticos falavam mais alto que o dinheiro naquele momento.

João Malaia - Revolução Vascaína: a profissionalização do futebol e a inserção sócio-econômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915–1934).

É nessa conjuntura que o Vasco muda de Federação e reingressa na LMDT, configurada agora numa espécie de segunda divisão, com os clubes da divisão de acesso. E é nesse contexto que Russinho finalmente estreia pelo Clube na temporada de 24, começando aqui nossa história.

#1.2 - A Temporada de 1924

Em 24, Russinho chega ao Vasco depois de se destacar no Andarahy, e logo em sua estréia enfrenta seu ex-clube, num amistoso. Para não dar margem à dúvidas quanto ao seu comprometimento, abre o placar da partida logo no início, mesmo que a nau vascaína viesse a ser derrotada naquele dia, um 27 de abril de 3 a 2 para eles.
Nessa que seria sua primeira de onze temporadas com a camisa vascaína, as conquistas já projetavam na imaginação do torcedor como seria sua trajetória no Clube: foram 25 gols em apenas 22 jogos, culminando no reconhecido título carioca da LMDT pelo Vasco, o primeiro título invicto do Clube e o primeiro de Russinho. Foi eleito nessa e nas 6 temporadas seguintes o melhor do Vasco no ano. A estreia de Russinho, aliás, foi no antigo estádio do Andarahy, que também foi onde o Vasco se sagrou campeão e ainda usaria para mandar jogos até a construção de São Januário.

Fonte: página do Facebook A Tijuca de antigamente

Foi nesse campinho que Russinho nasceu para o futebol e para o Vasco, em épocas distintas, mas nessa ordem. Como mostram as imagens retiradas da página do Facebook A Tijuca de antigamente, lembradas também no ótimo trabalho de mestrado do historiador João Azevedo - O ANDARAHY ATHLETICO CLUB: amadorismo e profissionalismo no futebol carioca (1915–1940), tinha a Igreja de Santo Antônio disposta atrás, área que na época de Mário Filho já levantava dúvidas quanto à localização exata, se Andaraí, se Vila Isabel, e que hoje segue sem consenso geral. Onde no mesmo lugar foi construída a sede do América nos anos posteriores e hoje se encontra o Shopping Iguatemi, ou Boulevard Rio. Atual rua Barão de São Francisco, que também já foi Barão de São Francisco Filho e, nos primórdios do futebol, rua Prefeito Serzedello Correa. Ali foi a casa do Vasco por anos. Sobretudo depois de mais incidentes racistas, dessa vez com o goleiro Nelson da Conceição, o primeiro goleiro negro do Vasco e da Seleção Brasileira (sobre Nelson, ver o trabalho AS MÃOS NEGRAS DO CHAUFFEUR NELSON DA CONCEIÇÃO: Futebol e Racismo na cidade do Rio de Janeiro (1919–1924) de Walmer Peres, Historiador do Vasco). Nos campos de Fluminense e Flamengo, o goleiro sofria de inúmeros insultos e pedras atiradas da torcida de trás do gol que incomodavam não só a ele, mas também ao Vasco. Assim, a Diretoria sem ter ainda um campo próprio, optou por levar com mais frequência os jogos para o campo do Andarahy a partir de 1925, que atrás do gol só contava com a torcida cruzmaltina e bem serviu até a inauguração de São Januário. Sobre isso, Mário Filho escreveu:

O Vasco mudou de campo outra vez, foi parar em Barão de São Francisco Filho. No Andaraí, Nelson da Conceição parou de se queixar. Estava mais ou menos em casa. (…) Assim, em dia de jogo, quem mandava no campo do Andaraí era o português. Somente torcedor de escudo da Cruz de Malta no peito é que podia ir pra trás do gol de Nelson da Conceição.

Mário Filho - O Negro no Futebol Brasileiro.

A equipe do Vasco, que em 1924 conquistou o título, no estádio do Andarahy. Em pé: Leitão, Mingote, Brilhante, Negrito, Nelson, Cecy, Russinho, Arthur, Paschoal e Torterolli. Agachado: Bolão. Fonte: O Malho, 02.08.1924.

#1.3 - A Temporada de 1925

Em 25, O Vasco finalmente ingressa na AMEA, e vê sua saga de 3 títulos seguidos chegar ao fim. Vale lembrar que o time vinha de 3 campeonatos estaduais com vitória (1922/23/24). Apesar do ano ruim do Vasco, Russinho segue se destacando, com 19 gols em 22 jogos, mantendo sua média geral maior a 1 gol por jogo até aqui e novamente sendo considerado o melhor da temporada vascaína.
O retorno à AMEA, contudo, não foi assim tão simples. Numa segunda rodada de avaliações e investigações, um ano depois do primeiro conflito, a entidade ameaçou novamente excluir os craques do quadro vascaíno, usando como argumento as resoluções já conhecidas desde 1923, que para esconder o verdadeiro caráter racial/social que alimentava aquela perseguição, se mascarava por trás de condições como o vínculo empregatício e a alfabetização, como bem lembra a passagem do belíssimo trabalho de Waldenyr Caldas que se firmou na historiografia como referência para este debate:

Esta comissão tinha um objetivo muito claro (…) averiguar, fazer um levantamento completo da vida profissional e social de todos os jogadores de futebol dos clubes filiados à AMEA. Embora os estatutos determinassem que a sindicância fosse extensiva a todos os clubes, o fato é que ela só começou efetivamente a trabalhar a partir do início de 1925, com o ingresso do Vasco da Gama na associação. Vale a pena acrescentar que a Comissão de Sindicãncia foi criada em dezembro de 1923, quando o “grupo dos 5” resolveu criar a AMEA.

Waldenyr Caldas - O Pontapé Inicial - Memória do Futebol Brasileiro.

Num primeiro momento, vários jogadores do Vasco, como Russinho, seriam novamente impedidos de competir e o Vasco provavelmente deixaria a liga. Após se impor diante de nova injustiça, sem abrir mão do desejo de ser reconhecido pela importância esportiva que de fato já representava em 1925, os cartolas vascaínos e outros adeptos da causa conseguem articular politicamente para reverter a situação a partir de uma nova investigação, que feita por outros avaliadores garantiu todos os seus craques para a temporada da AMEA.

A Comissão de Sindicância nem discutiu: cortou Ceci, como cortara o Espanhol, o Bolão, o Pascoal, o Negrito, como ia cortar o Artur, o Russinho, o Brilhante, o Mingote. (…) O Vasco, também, foi logo ameaçando de sair da Amea. Se a Amea não queria que ele tivesse time, era melhor dizer de uma vez. Resultado: outra sindicância, e feita por outra gente. Nada de Reis Carneiro, de Diocesano Ferreira Gomes, de Armando de Paula Freitas.*

Mário Filho - O Negro no Futebol Brasileiro.

O fato era que mesmo a própria AMEA e seus clubes filiados já haviam percebido que não ter o Vasco em seu campeonato significaria um retardo fincanceiro e de público acentuado. O campeonato de 1924 fora a maior prova disso, ilustrado a seguir em outra passagem de Waldenyr Caldas. Mesmo ensaiando resistência, a AMEA teve de, afinal, aceitar o Vasco e todos os seus jogadores, sem restrição:

A expulsão, no entanto, durou apenas um ano. Em 1925, por iniciativa do Fluminense, América, Botafogo e do árbitro Carlito Rocha, o Vasco ingressa na AMEA. Havia alguns motivos para que isso ocorresse.
O campeonato de 1924, organizado pela AMEA, apesar de reunir os grandes times, foi assistido por um número bem menor de espectadores, se comparado com o campeonato de 1923. Em contrapartida, havia sempre um expressivo público que ia assistir os jogos do Vasco da Gama pelo campeonato da LMDT (…).

Waldenyr Caldas - O Pontapé Inicial - Memória do Futebol Brasileiro.

#1.4 - A Temporada de 1926

Em 1926, novamente o melhor vascaíno na temporada e novamente mais gols que jogos. Foram incríveis 34 tentos em apenas 28 partidas. Russinho a essa altura já era um especialista da grande área. As mãos que naquele momento construíam o Stadium Vasco da Gama, da rua São Januário, tijolo por tijolo, podiam muito bem ser aos finais de semana as mesmas mãos que tanto “falavam” da arquibancada, se entusiasmando no embalo dos gols de Russinho. Era um momento de grande importância para a construção da identidade da torcida e do próprio clube, que viveria seca de títulos cariocas até 1929. Foi fundamental que, no vão sem títulos que se projetou entre 1924 e 1929, ainda sofrendo com as consequências da briga com a AMEA e a saga da construção de São Januário, o Vasco mostrasse pelo menos um bom futebol, mesmo que sem conquistas, para que seu torcedor continuasse se associando, participando da vida ativa do clube e mantendo as maiores assistências de público, como bem observado em Revolução Vascaína:

Ao analisarmos os relatórios do ano de 1926, alguns números chamaram a atenção. O Vasco da Gama já não era o clube que mais arrecadava no Rio de Janeiro. Caía para a quarta posição com a venda de ingressos e passava a ficar atrás do Fluminense, do Flamengo e do inesperado campeão daquele ano, o São Christovão. (…) Mas, ao observar o relatório sobre o público presente nos jogos, logo nota-se que o Vasco continuava sendo aquele que mais pessoas levava aos estádios. Foi um total de 119.279 espectadores nos jogos do Vasco como mandante, contra 75.841 do segundo clube com maior número de torcedores em seu estádio, o Fluminense. A resposta para esta questão estava no último e decisivo passo para que o Vasco se tornasse definitivamente um dos maiores clubes do Rio de Janeiro, do Brasil e da América do Sul. O clube não tinha tantos pagantes em seus jogos, pois iniciou uma gigantesca campanha para atrair sócios durante aqueles anos. O número de sócios aumentou muito e, como os mesmos não pagavam ingressos ou pagavam menos, as receitas com vendas de ingressos caíram, mas por sua vez o número de associados ao clube cresceu enormemente. Assim, o clube passou a ser também, além de campeão de público nos estádios, o clube com o maior número de associados no Rio de Janeiro. O motivo da campanha de sócios: levantar fundos para a construção do que viria a ser o maior estádio da América do Sul.

João Malaia - Revolução Vascaína: a profissionalização do futebol e a inserção sócio-econômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915–1934).

Russinho seguia somando boas atuações em campo, enquanto do lado de fora o maior palco da América do Sul era construído. Fez 3 gols em 3 partidas diferentes nesse ano. Uma delas num 5 a 3 contra o Botafogo, clube que também tomou 3 do craque no ano anterior. O último “Hat Trick” da temporada foi marcado em partida chave do certame, entre o vice campeão Vasco e o campeão São Cristovão, já no returno. O Vasco levou a melhor por 3 a 2, sob a liderança do atacante. E só não levou o campeonato naquele ano porque, motivado pela rivalidade que se perdura até os dias atuais, o Flamengo fez remarcar uma partida contra o mesmo São Cristóvão para 2 meses depois do último jogo do Vasco no campeonato, misteriosamente perdendo a nova partida por 5 a 1. Assim, o único clube que podia impedir um novo título do Vasco o fez:

Em pelo menos duas ocasiões o São Cristóvão esteve perto de dar adeus ao título. A primeira aconteceu a 14 de julho, em Figueira de Mello, quando perdeu de 3 a 2 para o Vasco, seu mais ferrenho adversário na competição. (…) A segunda batalha aconteceu no estádio da Rua Paysandu, a 1º de agosto. O Flamengo vencia por 3 a 1, quando o juiz Cyro dos Santos Werneck marcou um pênalti contra o rubro-negro. A torcida do time da casa invadiu o campo e o jogo foi suspenso. A AMEA decidiu que a partida seria reiniciada dias depois, com a cobrança da penalidade. O Flamengo recorreu, anulou o jogo e a entidade marcou outro, para o dia 21 de novembro. o São Cristóvão goleou por 5 a 1 e levantou o título.

Roberto Assaf e Clovis Martins - História dos Campeonatos Cariocas de Futebol 1906/2010.

#1.5 - A Temporada de 1927

1927, um ano feito para entrar na memória do vascaíno. É impossível comparar qualquer episódio desse ano à inauguração do maior estádio do continente a época. Mas Russinho se mostrava um coadjuvante a altura da narrativa que se apresentava. Nosso craque estava lá na inauguração, contra o Santos, uma derrota por 5 a 3 tão esquecida e desconhecida quanto a informação que virá a seguir.

A equipe que inaugurou o Stadium Vasco da Gama. Russinho era o 2º em pé, segurando justamente a parte vascaína da costura que trazia a bandeira da AMEA e de seus 10 clubes filiados. Fonte: Centro de Memória do Club de Regatas Vasco da Gama.

No último jogo da temporada, o amistoso contra o Palmeiras do dia 18 de dezembro, no já inaugurado São Januário, Russinho marcava um gol solitário que lhe consagrava como o primeiro jogador da história do Vasco a marcar 100 gols, sendo também o único capaz de fazê-lo em apenas 100 jogos como titular. Prova inequívoca da importância de Russinho para aquele período. O atleta cruzmaltino que mais perto chegou desse número foi Lelé, na década de 40, com média aproximada de 0,8 gol por partida. Russinho teve média 1. Considerei aqui as estatísticas do imprescindível Almanaque do Vasco, obra de 2019 produzida pelo Grupo PesquisaVasco. Um trabalho sem precedentes que, conseguindo compilar quase todas as fichas de jogo da história do Vasco, possibilitou essa e certamente possibilitará muitas outras pesquisas no futuro. O Almanaque do Vasco ainda dá conta de uma única partida, realizada em 31 de julho de 1927, um 2 a 2 contra o Villa Izabel em que Russinho não teria começado entre os titulares, atuando apenas a partir do 2º tempo. Para efeito desse recorde informado, essa partida não foi considerada, embora a marca de 100 gols em 101 jogos ainda fosse o recorde histórico entre todos os artilheiros vascaínos existentes. O número oficial da temporada é de 29 partidas com 22 gols, considerando a partida que Russinho entrou ao longo do jogo, primeira e única vez que isso aconteceu com o craque até 1927, segundo o registrado no trabalho. Sendo assim, o leitor pode decidir qual estatística usar, uma vez que todas estão corretas dentro de seus próprios critérios e configuram recordes absolutos:

⦁ Maior recordista de gols pelo Vasco nos 100 primeiros jogos:

100 gols nos primeiros 100 jogos como titular; ou
100 gols nos primeiros 101 jogos; ou, ainda
99 gols nos 100 primeiros jogos.

O Almanaque do Vasco também permite confirmar outro recorde geral do craque:

⦁ Maior média de gols por partida dentre os maiores artilheiros (+100 gols) do Vasco:

230 gols em 253 jogos. Média total aproximada de 0,9 gol por jogo. Os goleadores do vasco com melhor aproveitamento de gols por partida são, nessa ordem, Russinho, Lelé, Romário, Ademir e Roberto Dinamite. Esse último conseguindo estabelecer média de 0,6 gols por jogo, mesmo com mais de 1000 jogos.

O primeiro Vasco x Flamengo de São Januário. Era um festival amistoso para arrecadar fundos ao novo avião da tripulação do Argos e do major Sarmento de Beires, homenageados dias antes na inauguração do Stadium. Por isso, confundem-se na imagem os supracitados e os jogadores de Vasco e Flamengo. Russinho está ao lado esquerdo da foto, ajoelhado entre dois flamenguistas, com as mãos ao ombro do único sujeito deitado. Marcou 1 gol na vitória vascaína por 3 a 1. Fonte: Centro de Memória do Club de Regatas Vasco da Gama.

#1.6 - A Temporada de 1928

Em 1928, 29 gols em 30 jogos e pelo 5º ano consecutivo o melhor do Vasco na temporada. A 31 de março, em São Januário, o Vasco jogava amistosamente contra o Montevideo Wanderers/URU e inaugurava seus refletores para sua primeira partida noturna no estádio. Encontro que por si só já se mostraria histórico, mesmo sem o gol olímpico do ponta Santana que, sendo considerado o primeiro gol deste tipo registrado no Brasil, roubou a atenção das crônicas esportivas. Russinho, como quem sofria de predileção para viver grandes momentos, viu tudo de perto, em campo, sendo mais uma vez assim, ao mesmo tempo, testemunha ocular e ferramenta da História. Do seus pés ainda sairiam 3 “hat-tricks” naquela temporada, expressão que à época cabia mais ao Cricket. Foram 3 gols na mesma partida em 3 oportunidades diferentes: contra o Flamengo e o Bangu, em duas partidas consecutivas em 3 e 6 de maio, e outra contra o Villa Izabel, já no dia 7 de outubro. Número que aumentou na temporada seguinte, conquistando em 4 oportunidades os sonhados 3 gols por partida, além de seu recorde pessoal em um mesmo encontro logo na 1ª rodada.

Em 1928, pela semifinal do Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais, um Distrito Federal (Rio de Janeiro) x Bahia em São Januário teve um fato curioso. Minutos após marcar o único gol do jogo, Russinho recebeu uma entrada violenta de Popó, do combinado baiano, e teve que deixar a partida. A revolta dos torcedores presentes em São Januário contra a violência de Popó gerou tanta confusão que o jogo não teve segundo tempo. O gol solitário botou os cariocas na final, que sem Russinho, ainda contundido, venceram o combinado do Paraná e foram campeões nacionais. Fonte: Revista da Semana, 8.12.1928.

#1.7 - A Temporada de 1929

No ano de 1929, então, uma das temporadas mais brilhantes do craque. Russinho começaria a viver o auge de sua carreira, período que perdurou até 1931 e trouxe não apenas evolução técnica ao atacante, como uma popularidade experimentada por poucos jogadores até aquele momento no futebol.
Na abertura do Campeonato Carioca, nosso artilheiro franzino e loiro já encaçapava 5 gols no Bangu, um breve indicativo do que aprontaria ao longo da temporada. Ao fim do certame Russinho ajudava o Vasco a ser campeão depois de 4 anos sem o título máximo do Rio de Janeiro.

Fonte: reprodução

Com 23 gols, um atleta do Vasco conquistou pela primeira vez a artilharia do Campeonato Carioca, e não só isso, guardou 3 tentos especiais para a final. A partida era uma ‘Melhor de Três’ que vinha de dois empates com o América, em 0 a 0 e 1 a 1, este último com gol solitário de Russinho.

Fonte: Centro de Memória do Club de Regatas Vasco da Gama.

Uma mesma imagem da pose para a foto oficial antes do jogo saiu no jornal O Malho, com uma angulação pouco diferente, junto a alguns comentários sobre o jogo e destaque para Russinho:

“Ao centro, em baixo, está Russinho, que com raro brilho actuou no encontro, conquistando 3 dos goals que ergueram ao mais alto grão as côres do seu Club, dando-lhe assim o titulo tão ambicionado de Campeão de 1929. O que foi a actuação do center-forward vascaíno está no conhecimento de todos”.

Jornal O Malho, 30.11.1929.

Na finalíssima, então, o forward anota 3 dos 5 gols vascaínos e liquida a fatura, fechando a temporada com 31 gols em 31 jogos.
A linha vascaína movia-se com uma velocidade espantosa”, declarou Floriano Peixoto, o Marechal da Vitória e craque do América (só até aquele dia), em seu livro Grandezas e Misérias do Nosso Futebol. Moacyr repetiu os 3 gols naquele ano contra Corinthians-SP, Elvira-SP e Brasil-RJ. Com o Vasco 5 a 0 sobre o América, uma vez mais a carreata cruzmaltina saiu em festa pelas antigas ruas do Rio de Janeiro. O Vasco era, pela primeira vez, Campeão de Terra e Mar.

Durante 15 dias, os jornais se esqueceram um pouco do crash da Bolsa de Nova Iorque, que implicou a queda dos preços do café brasileiro, e passaram a falar na decisão. No primeiro jogo, 0 a 0; no segundo, 1 a 1. Mas no terceiro, também realizado nas Laranjeiras, o Vasco goleou por 5 a 0, provocando uma crise sem precedentes em Campos Sales.

Roberto Assaf e Clovis Martins - História dos Campeonatos Cariocas de Futebol 1906/2010.

Fonte: O Paiz, 26.11.1929

#1.8 - A Temporada de 1930

Em 1930, a fama do craque ganha novos contornos. Em promoção da Companhia de Cigarros Veado, o Concurso Monroe promove eleição para eleger o maior futebolista brasileiro. Dentre os candidatos, grandes jogadores como Fortes, do Fluminense, e Filó, do Corinthians/SP, disputaram com o craque vascaíno. Se valendo mais uma vez do trabalho Revolução Vascaína, o historiador João Malaia traça um panorama interessante sobre, lembrando a importância dessa promoção para a propaganda no mundo do futebol:

O ‘Grande Concurso Nacional Monroe’, promovido pela Cia de cigarros Veado, que elegeu o “Leader dos footballers do Brasil” foi uma das maiores estratégias de publicidade ligadas ao futebol do início do século XX, dando uma demonstração inequívoca do potencial deste esporte para a propaganda. A referida companhia, ao lançar um cigarro novo no mercado — os cigarros Monroe — decidiu organizar um concurso para eleger o jogador mais popular do país. As cédulas de votação eram os maços vazios de qualquer cigarro da Cia. Veado. Na parte da frente desses maços, ao lado do selo de consumo do governo, havia um espaço para se colocar o nome do jogador e o do clube escolhido pelo consumidor. O concurso teve a parceria do jornal Diário da Noite, do Rio de Janeiro, onde ficava uma das urnas para o depósito dos votos. A outra urna ficava no escritório central da companhia de tabacos, na Rua da Assembléia, no centro da cidade. Fora do Distrito Federal, havia urnas em todas as sucursais estaduais da empresa e nas sedes do Diário de São Paulo, na capital paulista, e do Estado de Minas, na capital mineira. O jogador mais votado receberia um automóvel muito apreciado no período, uma ‘barata’ da marca Chrysler. (…).

João Malaia - Revolução Vascaína: a profissionalização do futebol e a inserção sócio-econômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915–1934).

A mobilização da massa vascaína fez total diferença para que Russinho vencesse com 2.900.649 votos. Não apenas pelos eventos organizados no Clube como também através da articulação dos homens do Vasco, os antigos dirigentes e padrinhos do clube, autodenominados Comissão Pró-Russinho, promovendo várias ações em prol da causa. Um bom exemplo é o que se refere à um domingo qualquer de futebol no campeonato de 30, quando foi visto um avião circulando pelos estádios da cidade com partidas marcadas para aquele dia. O avião levava os dizeres “VOTAE EM RUSSINHO”. Apurando nos jornais de época, são muitas as evidências da influência da Comissão Pró-Russinho para a vitória, que contava com todo tipo de adepto, seja torcedores de outros estados enviando cartas, comerciantes portugueses usando seus negócios como injeção financeira, os velhos cartolas vascaínos ou simplesmente sua apaixonada torcida:

“VOTAE EM RUSSINHO”: O avião que sobrevoou os estádios de futebol fazendo campanha para Russinho e a mobilização da Casa Wilson e seus funcionários para contribuir com 50 mil votos. Fonte: 1 - Blog Memória do Torcedor Vascaíno. 2 - Diário da Noite, 31.5.1930
Parte da Comissão que ajudou na eleição do craque como Leader dos Footballers Brasileiros. Fonte: Diário da Noite, 31.5.1930.

A alegria pela vitória de Russinho foi tão grande e mobilizou a torcida vascaína de tal forma que o único desfecho possível seria uma grande festa em São Januário, com o craque desfilando em sua nova ‘Baratinha’.

Foram capturadas muitas belas imagens desse episódio no Stadium Vasco da Gama. A imagem que abre o presente trabalho, com Russinho e seu Chrysler, é um trabalho de recuperação, reproduzido por várias páginas na internet, da 3ª imagem desta matéria de 1930. Fonte: O Malho, 21.6.1930.

Ainda nesse ano, foi titular no segundo jogo da fraca campanha da Seleção Brasileira na primeira Copa do Mundo, no Uruguai, que teve o vascaíno Fausto, o Maravilha Negra, como melhor jogador brasileiro da competição. O episódio de Russinho e sua Barata ficou eternizado na voz de Noel Rosa, em sua música “Quem Dá Mais”. Não menos importante, Russinho foi considerado pela 7ª e última vez o melhor da temporada no Vasco, fazendo um dos gols no 6 a 0 contra o Fluminense, maior goleada do Clássico. Balançou as redes nesse ano 20 vezes em 32 oportunidades.

#1.9 - A Temporada de 1931

Mas se vamos falar de goleada em clássicos, é mais gostoso que se fale em 1931. Foi nesse ano que o Vasco venceu o Flamengo por 7 a 0, conquistando o maior placar histórico do confronto. Russinho, é claro, estava lá.

Fonte: blog Memória Vascaína.

É aceito pelos estudiosos do assunto que Russinho fez 4 gols nesse jogo, mas buscando uma investigação minuciosa e desviando de eventuais equívocos, encontrei algo completamente esquecido do imaginário vascaíno. O Diário de Notícias daquele dia aponta que Russinho também teria dado o passe final, ou seja, a assistência, para os gols de Mário Mattos e Santana.

Na reportagem do Diário de Notícias, com a análise de cada gol, é possível identificar não apenas os 4 gols de Russinho, como também suas 2 assistências. Ele só deixou de participar de 1 gol naquele jogo. Fonte: Diário de Notícias, 26.4.1931

Procurando não esbarrar em anacronismos, hoje o futebol já se serve melhor da ideia da importância da assistência como ferramenta estatística e método da Ciência do Futebol. O uso do ‘passe para gol’, que se desenvolveu no futebol como critério avaliativo de desempenho ao passo que o rendimento esportivo começou a ser encarado com mais seriedade, é hoje amplamente utilizado e estimado pelos grandes centros científicos de coleta de dados estatísticos sobre o esporte. Não precisamos ignorar a importância do passe para gol quando tratamos de futebol antigo, alinhando-se ao pensamento daquele tempo. Se o trabalho é elucidar o passado, é preciso encarar o desafio de investigar com poucas fontes, e usar do avanço da intelectualidade no mundo esportivo para melhor satisfazer o exercício do historiador e do historicizar. Em suma, o fato das crônicas à época não considerarem o conceito de assistência não o anula como método eficaz de análise.
Mesmo que muitos jornais da época cometessem inúmeros erros, é preciso no mínimo considerar a possibilidade de Russinho ter participado diretamente de 6 dos 7 gols daquela partida, com 4 gols e 2 assistências, no jogo que viria a ter o placar mais elástico de um dos maiores clássicos do mundo. Não é absurdo dizer que Russinho foi o maior personagem daquele jogo e que, talvez, sem ele o placar fosse apenas mais um placar, e não um recorde histórico.

Nessa investigação, também encontrei indícios que ele teria dado o passe para o 4º gol do Vasco na finalíssima contra o América, em 1929. Mais uma vez tomando conta do jogo, influenciando nos primeiros quatro dos cinco gols do dia.

Fonte: O Paiz, 26.11.1929.

Russinho era assim, de dias bons e de dias para recordes. E não era atacante só de gol. As assistências esquecidas do craque não são a única prova de seu caráter completo como atacante. Ainda por ocasião do Concurso Monroe, uma chamada da Comissão Pró-Russinho exalta a qualidade do craque no passe, traço identitário do futebol de Moacyr. O “Príncipe dos Passes” era atacante pra além de gol:

Fonte: Diário da Noite, 1.5.1930.

Ao final da temporada, a segunda e última artilharia em campeonatos cariocas na carreira, com 17 gols. E outro fato inusitado: participa da primeira excursão internacional do Vasco, apenas a segunda vez de um clube brasileiro no Velho Continente. Tendo atuado em 9 das 12 partidas que fez o Vasco, marcou incríveis 11 gols. Nas duas partidas de estreia, ambas contra o Barcelona, na Espanha, uma derrota por 2 a 3 no primeiro encontro e, no dia seguinte, 2 a 1 com o gol da vitória anotado pelo capitão Russinho.

Russinho, capitão do Vasco, e o craque Samitier, capitão do Barcelona. Fonte: Centro de Memória do Club de Regatas Vasco da Gama.

O amigo que chegou até aqui bem deve se lembrar que Fausto e Jaguaré ficaram no Barcelona, um craque vascaíno para cada gol que Russinho causou ao clube catalão. Bem, Russinho quase ficou pela Europa também, só que preso, após confusão generalizada contra o Porto, em Portugal. Sem maiores problemas, o Cônsul brasileiro fez libertar o valoroso atleta cruzmaltino.
Pronto. Russinho agora reunia todos os elementos que, quase 100 anos depois, fazem de alguns jogadores do presente, sob o seio do imaginário místico do futebol, grandes personalidades do esporte.

Fonte: Jornal dos Sports, 28.7.1931.

De jeito nenhum o incidente prejudicou a imagem do craque ou do Vasco. Muito pelo contrário, enquanto os jornais brasileiros destacavam as atuações de Moacyr em solo europeu, o apontando como jogador mais popular do Rio de Janeiro, o Vasco era recebido por uma multidão em seu retorno à capital do Brasil.

1 — “Russinho é o jogador mais popular do Rio. Sua atuação, no Velho Mundo, tem sido das mais brilhantes”. 2 — O regresso do Vasco, onde hoje é a região do Píer Mauá.

#1.10 - O Início do Fim

Nossa linha do tempo acelera a partir de 1932, o início do fim de Russinho no Vasco. O craque ainda viveria a transição do futebol amador para o profissional, oficializado em 1933, e jogaria os primeiros jogos do Carioca de 1934, quando o timaço que o cruzmaltino montou com Rey, Domingos da Guia, Fausto, Leônidas da Silva, Gradim e outros craques faria o clube campeão carioca pela 4ª vez.

Fonte: anotandofutbol.blogspot.com

Russinho joga apenas o primeiro turno do Campeonato Carioca de 34, realizando sua última partida em 22 de abril contra o São Cristovão. Encerra assim sua passagem pelo Clube como jogador, 11 temporadas que o tornaram um dos maiores atacantes do Club de Regatas Vasco da Gama. Em 1935, já pelo Botafogo, reedita dupla de ataque com Leônidas, o Diamante Negro, conquistando seu último título carioca da carreira. Permanece na equipe de General Severiano até a temporada de 1937. A partir de 1938, Russinho retorna ao Vasco como Diretor, atuando também por alguns jogos como Técnico Interino entre as trocas de comando técnico de Floriano Peixoto para Carlos Scarone. Na ocasião, foi o primeiro ex-jogador do Vasco a atuar também pelo Clube como técnico. Russinho permaneceu ativo na vida do time de São Januário, lembrado ao longo dos anos por participações como na da comissão que, organizando campanha de arrecadação, ofereceu à Força Aérea Brasileira o caça Vasco da Gama, em cerimônia realizada em tempos de 2ª Guerra, a 10 de dezembro de 1942, em São Januário.

Como se verá agora na análise final do craque, os números de Russinho o colocam em um patamar diferenciado na prateleira de ídolos vascaínos. Não fossem os quase 100 anos entre sua estreia e o presente momento, certamente Moacyr Siqueira de Queiroz teria maior destaque nas páginas que contam a história do Vasco da Gama. O que é encontrado hoje no campo da Historiografia do Futebol não se mostra suficiente para o tamanho e representação que teve o “Demônio Louro”, como certa vez o alcunhou Mário Filho.

TABELA 1: a evolução dos números de Russinho ao longos das 11 temporadas no Vasco.

TABELA 2: os episódios que marcaram a carreira de Russinho em sua passagem pelo Vasco.

#2 - Arquivos raros: vídeo esquecido na internet flagra gol de Russinho em 1926

Largado e esquecido na internet, em alguns canais do Youtube e Blogs antigos, no meio dessa pesquisa me deparei com o vídeo A Propósito de Futebol, de Lafayette Film, que refuta qualquer opinião contrária ao seríssimo entendimento da manifestação do futebol como arte legítima. Com participação de Oswald de Andrade, uma partida do Campeonato Carioca de 1926 é filmada - sim, filmada, e com a melhor qualidade que se tinha à época - desde a chegada da torcida ao descer dos bondes, até entrada do torcedor no belíssimo Estádio das Laranjeiras, seguida de alguns lances do que seria o primeiro tempo da partida, e a saída do jogo.
Confesso que, alguns anos atrás, descobri pela primeira vez o vídeo, mas por não conseguir identificá-lo melhor acabou se perdendo também na minha memória. Ao redescobri-lo recentemente, puxando as fichas de jogo e estabelecendo as possibilidades reais, cruzando imagens congeladas da gravação com as fotos dos jornais, pude confirmar a hipótese de se tratar de um Fluminense 2 a 1 no Vasco, no dia 23 de maio de 1926. Prova disso foram as imagens da foto oficial dos times antes da bola rolar, expostas nos jornais investigados e reproduzidas fielmente no vídeo, com os mesmos jogadores escalados e a mesma disposição geográfica entre eles na pose feita para o clique.

Fonte: O Malho, 29.5.1931

O que nos leva a uma segunda hipótese: no vídeo apenas lances de ataque do Vasco são captados, incluindo um gol. Ora, se apenas um gol foi feito pelo Vasco naquele dia, poderíamos investigar quem foi o autor usando as fichas de jogo. Além de descobrir que aquelas imagens são do primeiro tempo, pois foi nesse tempo que o Vasco marcou, confirmei que aquele é um gol de Russinho. Os jogadores que levantam a mão e correm em direção ao campo confirmam a validação do gol, enquanto a pressa do jogador que corre para buscar a bola nas redes ilustra que se tratava de um gol de empate, satisfazendo o descrito nas fichas de jogo. Nesse vídeo, que certamente é uma das filmagens mais antigas que se tem de um jogo do Vasco, poucos minutos eternizam lances da bola que evidenciam, desde a chegada dos bondes ao estádio, um sensacional panorama da sociedade e do futebol no século 20. Em imagens, o maior ídolo do Vasco à época marca e faz a torcida vascaína, que era também a mais marginalizada por seu caráter evidente, explodir em alegria. Aqui algumas palavras são dignas de transcrição. Nos resta apreciar.

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“O Futebol
Transferência nervosa que faz escoar para os gramados as energias do povo
Narcotizado nas parcas horas que lhes sobrariam para assuntar”
Lafayette Film - A Propósito de Futebol.

#3 - Russinho, o amadorismo marrom e a propaganda nos anos 20 e 30.

Mesmo que não fosse o principal objetivo deste trabalho usar Russinho como objeto para entender a complexidade da prática do futebol como fenômeno social nas décadas de 20 e 30 no Rio de Janeiro, algumas questões notáveis que precisam ser ao menos citadas perpassam essa investigação. A figura de Russinho no contexto estratégico estabelecido no Vasco de buscar craques das ligas suburbanas a partir de 1919 foi, sem dúvida, uma das que teve mais efetividade dentro do cenário esportivo. Ganhou-se um ídolo e um representante de uma ideia que naquele momento possibilitava ao Vasco franco crescimento.
O chamado amadorismo marrom, prática esportiva que se sustentava a partir do pagamento do “bicho” para os jogadores, o que era proibido na época, foi a grande cartada do Vasco para conquistar os campeonatos a partir de 1922. Mesmo que no caminho do progresso, a prática era impedida. Ainda sim, utilizada. Ela possibilitava a justa remuneração de bons jogadores daquele novo esporte, sobretudo pretos e pobres que poderiam vislumbrar dias melhores, ascender socialmente. E foi assim que, às escondidas, o Vasco foi selecionando e pagando os melhores jogadores do subúrbio até que concentrasse no escrete o onze campeão da cidade. A imposição do amadorismo, obviamente, tinha a ver com a ideologia que predominava nos clubes ricos em limitar o futebol às elites e associados dos clubes, enxergando como uma imoralidade um clube rico pensar em ter jogadores pretos e pobres, mesmo que fossem melhores. O Vasco escancara isso em 1923 com o título, e ao longo dos anos seguintes confirmando seu pioneirismo na captação de craques do subúrbio carioca. Mário Filho explica bem em sua obra o principal motivo para apenas em 1923 um time como o time do Vasco se sagrar campeão quando aponta o abismo que havia entre o estudante rico que jogava nos clubes da Zona Sul e o trabalhador preto/pobre que jogava nas pequenas equipes. O primeiro tinha melhor estrutura, alimentação e tempo pra treinar. Vantagem que significava sempre os mesmos clubes campeões. 10 anos depois, em 1933, foi o Fluminense que liderou o movimento pela profissionalização do futebol. Alguns dos Grandes enxergaram na nova regra a possibilidade de contratar os pretos e pobres que já há alguns anos beliscavam os campeonatos, exclusivamente na condição de empregados, arrumando assim um meio de não ameaçar o traço de personalidade que tinham os clubes ricos. Sem ter, sobretudo, problemas com os próprios sócios quanto a alguns jogadores vestindo as cores de seu pavilhão, repetindo incidentes já testemunhados antes.
Atuando no Vasco entre 1924–1934, Russinho é também vítima do preconceito social alimentado pela visão aristocrata do futebol nos anos 20. Por não possuir riqueza ou título social, foi junto a outros jogadores criminalizado pela AMEA em repúdio à conquista de 1923, e barrado do Campeonato de 1924. Seria novamente barrado em 1925, como já vimos, não fosse a articulação política ensaiada.
Pensar o atacante como um dos grandes personagens, inclusive políticos, do período amador do futebol não parece equivocado ao buscar fontes da época. Seja sobre os excluídos de 24 ou os investigados de 25, a inauguração de São Januário,a prática do bicho, o amadorismo marrom ou a propaganda no futebol, Moacyr sempre estava lá. Como produto de seu próprio tempo.
Russinho, que vira e mexe concedia algumas entrevistas, certa vez comentou sobre a situação do amadorismo marrom e a profissionalização disfarçada, escancarando o esquema de recebimento do “bicho” na iminente virada para a nova lei. O caso, que teve grande repercussão, gerou mais entrevistas no Jornal O Globo e mostrou uma face ainda não explorada da carreira do atacante, a de ator político na luta pelo profissionalismo:

Eu recebo e todos recebem. Quem dá a ‘condução’ é a CBD, é a AMEA, são os clubes. Contra os uruguaios, os brasileiros receberam cem mil réis de condução. Contra os paulistas, na decisão do Campeonato Brasileiro, os cariocas receberam cinquenta. Contra o Botafogo eu recebi trinta mil réis. Veja bem as diferenças. Depende da importância do jogo, da renda que o jogo produz. E eu pergunto: se eu não gasto nem cem mil réis, nem cinquenta, nem trinta de condução em um dia de jogo, a que titulo me dão o resto? Sim, a que titulo? Só pode ser como gratificação; e convenhamos que, se for assim, é pouco, é irrisório.

Russinho para o Jornal O Globo, 30.9.1931.

Após grande repercussão dessa primeira entrevista, que seria confirmada na segunda matéria, muito se falou sobre as afirmações de Russinho, que recebeu ataques de parte da Imprensa e voltou a falar. O craque manteve sua posição em afirmar não só a existência do “bicho” como também apontar como prática recorrente de vários clubes e entidades, e saiu em defesa dos jogadores que não tinham futuro garantido no futebol. Como se soubesse, seu fim acabou sendo mesmo o da pobreza como foram o de vários outros craques dessa época. Faleceu esquecido, sem riqueza e sem tantas informações disponíveis quanto esse trabalho gostaria de oferecer. Sua preocupação com o já agonizante amadorismo era legítima. Vejamos suas palavras em entrevista para um jovem Mário Filho:

E o chronista pergunta: “Se não déssem aos amadores (sempre esta palavra!) essas indemnisações, poder-se-ia contar com sem concurso?” Eu responderei, por todos os jogadores do Rio: em nenhuma parte do mundo se pratica o football com maior espirito de sacrificio. Por isso, os jogadores aqui, duram somente quatro annos, geralmente. Os casos não são poucos e illustram perfeitamente a minha affirmativa. Pernas quebradas, rotulas fora do lugar, carreiras cortadas no apogeu. Não será por causa de trinta nem de cem mil réis que um jogador arrisque a vida, a sua carreira, o futuro de sua família, mesmo porque elle sabe o que o espera.

E finaliza sua entrevista, após responder muitos dos ataques que recebeu, dessa maneira:

Como viu, não tive difficuldade de destruir, ponto por ponto, todos os ataques dirigidos a mim. Satisfaz-me uma coisa: o publico está comigo, porque entendeu a minha entrevista. Não modifico uma só palavra do que disse. Reaffirmos-as. Alguem falou que eu poderia sofrer uma penalidade, ante as leis da Fifa. Então se daria um facto interessante: a penalidade attingiria á C.B.D., á Amea, aos clubs, aos jogadores, attingiria a todo o nosso football e não ficaria um só para contar como foi… Eu não sei, os jogadores não sabem se são amadores..

Russinho para o Jornal O Globo, 3.10.1931.

Na edição de alguns dias depois o periódico trazia uma entrevista com outro craque da época, Lagarto, apontando a importância da fala de Russinho para aquele momento do debate do amadorismo marrom. Certamente, ainda há muito a se descobrir sobre o atacante e sua atuação no que se refere ao período de transição entre o amadorismo e o profissionalismo:

Ainda hoje se fala na entrevista de Russinho, sem duvida nenhuma a nota sportiva mais sensacional do anno. “Foi o maior passo que se deu para o profissionalismo” — dizem uns. E Lagarto ainda hontem falava sobre elle naquella mesa de café.
- Russo disse uma verdade, embora uma verdade dura. Eu achava que elle deveria ter esperado um pouco para dizer o que disse. Um golpe como o que elle vibrou no amadorismo de “facadas”, só devia ser applicado quando já se tivesse dado o passo para o profissionalismo. Russo não quiz esperar. Vibrou o golpe e apressou a vinda do profissionalismo. Pelo menos esta é a minha impressão.

Lagarto para o Jornal O Globo, 8.10.1931.

Sobre o episódio das entrevistas de Russinho, a tese de Doutorado de José Geraldo do Carmo Salles, Entre a paixão e o interesse - O amadorismo e o profissionalismo no futebol brasileiro, traz outras diferentes passagens e perspectivas sobre as palavras do entrevistado. Também discute sobre a dimensão da sua atitude em denunciar a dinâmica do agonizante amadorismo marrom, enriquecendo profundamente o debate. Como não é o objetivo deste trabalho se alongar no tema, deixamos aqui apenas como referência e apontamento para novas possibilidades acerca da carreira de Moacyr Siqueira de Queiroz.

Seus apontamentos balizaram as crônicas esportivas naqueles dias, dando o tom do debate que vários cronistas esportivos buscavam respaldo. As afirmativas de um jogador seriam o argumento oportuno para confirmar a presença do amadorismo marrom tão criticado, mas que as vozes se silenciavam, deixando os articuladores sem força para combater efetivamente o fato. A partir desta entrevista, as portas estariam abertas, para outras denúncias e declarações. Russinho funcionou para a imprensa como o ‘pavio’ necessário para estourar a bomba do debate em torno do profissionalismo.

José Geraldo do Carmo Salles - Entre a paixão e o interesse - O amadorismo e o profissionalismo no futebol brasileiro.

Fica evidente, contudo, que a Historiografia do Futebol, ao não analisar individualmente a trajetória de Russinho, pode ter perdido a oportunidade de um grande objeto, na figura de um personagem futebolista ídolo máximo de seu clube, para pensar períodos importantes do futebol como a luta pelo profissionalismo que, aliás, na opinião de muitos autores, começa com o Vasco da Gama em 1923, com o bicho e a taça, e termina em 1933 com o mesmo Vasco, na reunião do Conselho que decide pelo voto a favor da Liga Carioca de Futebol e do profissionalismo.

O papel de Russinho para a propaganda também é muito importante visto a conjuntura de seu tempo. Vencer numa eleição atletas como Fortes, do Fluminense, tricampeão carioca e bi campeão sul-americano, e Filó, craque e representante dos interesses de São Paulo, além de Friedenreich, mobilizar quase 3 milhões de votos numa eleição em que cada voto significava o investimento num maço de cigarro, em pleno ano de 1930, não era pouca coisa. Para se ter ideia, a eleição presidencial de 1930, que não teve efeitos legais pois foi interrompida pelo golpe daquele mesmo ano e o Governo Provisório com Getúlio Vargas à frente, mobilizou menos de 2 milhões de votos.
Gerando matérias diárias com números parciais de eleição, entrevistas com cartomantes, projeções e perfis dos craques, foi tema das maiores redações da época por meses. A própria Imprensa, entendida aqui como a instituição, sabia que se tratava de um grande movimento de marketing para aqueles tempos. A mobilização, que seria chamada hoje de engajamento, pareceu abrir mais os olhos para a propaganda no esporte e no futebol:

O Diário da Noite exalta o sucesso do concurso e “O valor da propaganda”.
“A victoria do Concurso Monroe — Um acontecimento realmente sensacional e sem precedentes na historia da propaganda commercial e do jornalismo brasileiro”. Fonte: Diário da Noite, 2 de junho de 1930.

#4 - Conclusão

Para além do rendimento esportivo fascinante e esquecido, que certamente o coloca numa seleta lista de grandes ídolos ou lugar maior do que ocupa hoje no imaginário vascaíno, a importância do craque dentro das 4 linhas, e o efeito positivo de sua presença no Vasco, Russinho também pode ser entendido não só como testemunha ocular de vários momentos importantes do futebol como também atrativo objeto de estudo para questões que dialogam com o esporte em si, como a transição do entendimento do futebol como profissão, a lógica por trás da prática do chamado amadorismo marrom e a importância e o surgimento da propaganda aliada ao mercado esportivo.
Essas questões, tanto o amadorismo quanto a propaganda, provavelmente seguirão junto com o presente trabalho o caminho natural da produção acadêmica. Novas produções a respeito desses temas virão com a devida orientação e rigor da Academia. Contudo, penso que essa parte que trata especificamente sobre a atuação esportiva do craque no cenário carioca e nacional, tão logo exista, deve ser amplamente divulgada.
Por uma história do Vasco pública e acessível, ficam aqui minhas primeiras considerações sobre o esquecido craque Russinho. Outras virão.

Sobre o autor:

Bruno Pagano é historiador em formação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador na área da História do Esporte, sobretudo a história do Vasco e do Futebol Carioca. Com vivência em eventos acadêmicos e encontros com pesquisadores e grupos de pesquisa de futebol, estuda o tema desde 2017. Tem passagem como estagiário pelo Centro de Memória do Vasco entre 2018 e 2019. Hoje trabalha na área da Educação pré-vestibular mas segue estudando Futebol.

O presente trabalho marca o primeiro ato de um projeto independente que, entre produções para o ambiente universitário e para a massa vascaína organizada no mundo virtual, apostará em promover com investigação, método e compromisso com a verdade períodos esquecidos ou não bem elucidados da história do Club de Regatas Vasco da Gama, com o rigor acadêmico e a linguagem universal que todo trabalho de memória exige. Se você apoia esse projeto, ofereça alguns minutos do seu tempo para seguir, curtir e compartilhar nossas páginas e posts nas redes sociais.

Nossa construção será coletiva!

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Bruno Pagano

História/UFRJ — foco na História do Vasco. Hoje trabalha com Educação. Antes, passagem pelo Centro de Memória CRVG. escrevo sobre Vasco pelo codinome BP Colina!